Entrevista - António Guterres

Publisher: Jornal do Commércio do Rio de Janeiro
Author: Alana Rizzo e Renata Tranches
Story date: 03/08/2011
Language: English

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Em um contexto global de intolerância crescente aos imigrantes, no qual se abrem espaços para que novas crises humanitárias surjam sem que as antigas tenham sido sanadas, o alto comissário das Nações Unidas para Refugiados, o português António Guterres, aponta que a resposta para o problema tem de ser política e multilateral. Em entrevista exclusiva ao Jornal do Commercio, durante sua segunda visita oficial ao Brasil (a primeira foi em 2005), Guterres destaca o papel do País na causa dos refugiados, principalmente a iniciativa para o reassentamento de palestinos – pela primeira vez em Estado não árabe – e a acolhida aos haitianos após o terremoto de 2010.

O comissário ressalta ainda as transformações do termo refúgio: "Antigamente, olhava-se só para perseguição política. Hoje, já se reconhece perseguição por razões de natureza cultural e por questões relacionadas à preferência sexual".

Ex-primeiro-ministro de Portugal e ex-presidente do Conselho Europeu, Guterres alerta para práticas de violação dos direitos humanos por vários agentes, inclusive Estados. Ocomissário da ONU manteve encontros oficiais, ontem, com o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) e o Ministério das Relações Exteriores, nos quais voltou a elogiar a atuação brasileira. Na entrevista, indica que a ampliação desse papel será bem-vinda.

'A solução é sempre política'

JORNAL DO COMMERCIO – O senhor destaca o exemplo do Brasil na causa dos refugiados. Algumas pessoas, principalmente as ligadas ao Ministério Público, dizem que ainda é preciso melhorar as condições para receber tanto refugiados, como imigrantes. Apesar de a legislação garantir acesso às políticas de saúde e de educação, com o número de imigração aumentando, começa-se a restringir um pouco. O senhor acha isso natural? Como equilibrar essa questão, não só no Brasil, mas no mundo?

É sempre possível aperfeiçoar uma política. Em primeiro lugar, gostaria de sublinhar que a legislação brasileira é uma das mais avançadas do mundo. Em segundo lugar, o Brasil tem tido sempre uma atitude de grande abertura em relação ao atendimento de refugiados, quer aqueles que solicitam diretamente a proteção das autoridades brasileiras, dentro do Brasil, quer pela política de reassentamento, que teve importância estratégica muito grande no quadro da América Latina. Essa política, inclusive, foi pioneira com relação aos palestinos. Pela primeira vez foi possível obter acordo da Autoridade Palestina e até de elementos ligados ao Hamas (grupo islâmico que controla a Faixa de Gaza), dos governos sírio e jordaniano, para que palestinos fossem reassentados no Brasil. Pensar que palestinos pudessem ser assentados fora do mundo árabe era tabu até então. O aspecto mais difícil nessa questão dos refugiados é sempre sua integração harmoniosa numa sociedade. O Brasil teve, no caso dos haitianos, uma política também de abertura no plano humanitário. Fiz um apelo aos Estados para não enviarem de volta haitianos, na situação difícil que o país ainda se encontra, e o Brasil foi um dos que responderam de forma mais aberta. O Brasil prepara-se para ratificar a convenção dos direitos dos imigrantes e de suas famílias.

No caso dos haitianos, houve confusão sobre se tinham direito ao refúgio. No caso de Césare Battisti, também houve essa discussão se era um refúgio político ou não. Como é possível tornar isso mais claro? O que é considerado refúgio e o que poderia ser enquadrado em outras categorias?

A convenção de 1951 decide as situações em que a pessoa que está sob perseguição pode ser considerada um refugiado e receber proteção, de acordo com a lei internacional. A própria convenção foi evoluindo com o tempo, na forma como é aplicada. Antigamente, olhava-se só para a perseguição política. Hoje, já se reconhece a perseguição por razões de natureza cultural, por questões relacionadas à preferência sexual. A situação de homossexuais em alguns países, especialmente no Oriente Médio, é particularmente dramática.

Há refúgio para esses casos?

Sim, há refúgio concedido por essas razões. Agora, há muitas situações em que as pessoas não se enquadram nos critérios definidos na convenção de 1951, mas há fortes razões humanitárias que justificam a proteção. É o caso do Haiti. As pessoas não estão fugindo de perseguição, mas de total ausência de condições para que possam viver normalmente. Por isso mesmo, o apelo que fiz foi para que os Estados reconhecessem essas pessoas e lhes dessem pelo menos proteção temporária. Foi o que o Brasil fez, inclusive concedendo a eles direitos de residência, de trabalho e outros aspectos essenciais para que possam viver com dignidade na sociedade brasileira.

Como se pode observar no último relatório do Acnur, o Brasil, em comparação a outros países em desenvolvimento, poderia receber mais refugiados. Existe essa expectativa?

O reassentamento é muito importante, visto que temos, infelizmente, um conjunto de problemas no mundo para os quais não há outra solução. Isso tudo causa grande vulnerabilidade e condena as pessoas a viver 10, 15, 20 anos em campos de refugiados, onde não há qualquer condição de realização humana. Nosso apelo é sempre para que os Estados aumentem as cotas de reassentamentos. Mas é importante garantir que haja boas condições de integração. Precisamos que o Brasil vá aperfeiçoando mecanismos de integração e permitindo que o número de refugiados e reassentados aumente, uma vez que o Estado brasileiro tem dimensões importantes, não apenas demográficas, mas também econômicas.

Especificamente com relação à revolta árabe e ao número de refugiados que já criou, o Brasil pode colaborar e receber pessoas do Norte da África e do Oriente Médio?

Temos neste momento um programa de reassentamento de refugiados a partir da fronteira da Tunísia e do Egito com a Líbia. Esse é um problema particularmente importante. São pessoas que não têm para onde ir. Muitas já eram refugiadas na Líbia. Tenho esperança de que seja possível encontrar soluções de reassentamento, já que temos cerca de 4 mil pessoas nas duas fronteiras. É um bom exemplo no qual a cooperação brasileira é extremamente bem-vinda.

Como o senhor vê a decisão de países da Europa de fechar portas?

Com relação aos que têm saído da Líbia pelo Mediterrâneo, todos têm sido recebidos e têm sido dadas oportunidades. É também verdade que se tem manifestado no debate político europeu um conjunto de posições muito restritivas, sobretudo com relação aos movimentos migratórios e ao asilo.
 

Refugees Daily
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