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Dramaturgia ajuda refugiados do Burundi a enfrentar desafios do cotidiano

Recomeçando sua vida na República Democrática do Congo, mãe burundiana busca forças em seus papéis com um grupo de teatro amador.

UVIRA, República Democrática do Congo, 31 de janeiro de 2017 - Com os olhos cheios de pânico, dois jovens homens buscam abrigo ao fundo do pátio sob um sol escaldante. Atrás deles, um muro de chapas de ferro bloqueia a passagem: não há saída. Eles gritam apavorados.

De repente, termina. Os homens se levantam e espanam a poeira de suas calças. Próxima cena.

Ensaiando exaustivamente, eles fazem parte de uma trupe de atores formado por refugiados e locais que vivem em Uvira, uma cidade localizada na instável parte leste da República Democrática do Congo (RDC).

Entre os atores do grupo teatral, conhecido como The Kings of Peace (Os reis da paz, tradução livre), está Rehema Kankindi, uma viúva de 56 anos que foi forçada a deixar o Burundi devido aos conflitos no país em 2015. Os ensaios estão sendo realizados no jardim de uma modesta casa onde ela aluga dois quartos para ela mesma, acompanhada de seus dois filhos e netos.

“Havia um monstro atrás desses dois rapazes”, Rehema explica com uma voz suave. “Essas são as histórias que as pessoas contam por aqui”.

Em todo o mundo, o ACNUR, a Agência da ONU para Refugiados, ajuda a proteger refugiados urbanos que, como Rehema, não vivem em campos, e promove a coexistência pacífica deles com as comunidades anfitriãs.

Entretanto, tendo recursos limitados em seus programas na RDC, o ACNUR não consegue fazer tudo que gostaria para oferecer apoio psicossocial aos refugiados. Por outro lado, o ACNUR encoraja grupos como o The Kings of Peace como forma de ajudar refugiados a superar as experiências dolorosas e viver com dignidade onde eles estiverem.

O grupo teatral The Kings of Peace ensaia um ato no fundo de um quintal em Uvira, na RDC. © ACNUR/Eduardo Soteras Jalil

Conforme os atores continuam seus ensaios, o pequeno jardim é ocupado por uma plateia improvisada que vive na vizinhança. Crianças de chinelo sentam-se ao lado de mulheres de vestidos coloridos e alguns homens. Hoje, a entrada é gratuita, mas quando o The Kings se apresenta em um dos restaurantes mais populares de Uvira, os recursos arrecadados com os ingressos são muito bem-vindos.

Mas para Rehema o teatro significa muito mais do que ganhar uns trocados. “Eu percebi que tinha que me juntar a esse grupo”, disse ela, que tem diabetes, uma condição que pode ser agravada por estresse físico e mental. “Quando estamos atuando, nós rimos, choramos, estamos juntos em evidência. Isso me ajuda a aliviar o estresse e a sobreviver”.

 

“Quando estamos atuando, nós rimos, choramos, estamos juntos em evidência. Isso me ajuda a sobreviver”.

 

Algumas das cenas abordam violência e refúgio, e forçam Rehema a encarar os mais difíceis episódios de sua vida. Dois de seus filhos já adultos desapareceram durante o conflito civil do Burundi, há um ano. Ela ouviu rumores de que eles haviam sido assassinados. O marido de Rehema faleceu um ano antes, deixando-a para cuidar da família e para organizar a ida de todos para a RDC a partir do momento que o Burundi se tornou demasiado perigoso para eles.

“Não sabemos por que eles foram assassinados. Ninguém nos explicou a razão. Naquela época, pessoas eram sequestradas e mortas sem motivos aparentes”, ela diz.

Fora do grupo de teatro, a vida é difícil para Rehema. Para colocar comida na mesa da família, todos os dias ela trabalha arduamente vendendo frutas e verduras em uma banquinha simples na frente de sua casa. Os tomates são arrumados em pirâmides de quatro, ao lado dos pimentões verdes e uma lata com óleo de palma. 

Rehema Kankindi, uma refugiada do Burundi, vende frutas e verduras em uma banca em frente à sua casa. © ACNUR / Eduardo Soteras Jalil.

Rehema é particularmente vulnerável. Ela é viúva, chefe de família e sofre de uma doença crônica. Recentemente, o ACNUR forneceu remédios para diabetes e outras doenças e os funcionários da agência fazem acompanhamento dela e de sua família com frequência. Isso faz com que ela se sinta mais segura: “Sinto que não estou abandonada”.

“Ela precisa de proteção”, disse Esther Kashira, funcionária da Unidade de Proteção do ACNUR em Uvira. “Nós acompanhamos o seu caso durante as visitas ao acampamento. Nossa presença ajuda a proteger e a tranquilizar os refugiados”.

No empoeirado quintal, iniciam-se os ensaios para a próxima cena. Rehema atua como a mãe de um menino que largou os estudos e agora anda em má companhia. Ela interpreta o texto com uma emoção profunda e genuína.

Sua performance é convincente porque ela se inspira em sua experiência de vida: seu filho mais novo, Swedi, de 16 anos, não frequenta a escola desde que eles deixaram o Burundi. Sua filha, Shebaby, de 18 anos, sonha em ir para a universidade. Porém, por enquanto, não há dinheiro suficiente para pagar as taxas.

Apesar dos desafios, Rehema jamais desistirá. “Minha doença não tem cura”, ela diz, e isso é fato. “Se as crianças estudarem, podem cuidar de si mesmas por toda a vida”. E assim, ela retorna aos seus ensaios, buscando no teatro e na plateia a energia que precisa para seguir em frente, tanto por ela quanto para sua família.